Tente não sentir a Anne Frank e falhe miseravelmente
- Jaíne Sangon
- 5 de abr. de 2020
- 7 min de leitura
Atualizado: 7 de ago. de 2020
(As partes destacadas de azul contêm spoilers)

O Diário de Anne Frank foi escrito por ela, Anne Mary Frank, jovem adolescente, durante a segunda guerra mundial. Ela, que morava na Holanda junto com sua mãe, pai e irmã, descrevia no diário o seu dia a dia de adolescente normal que estuda e tem amigas... até que tudo mudou.
A jovem começou a ouvir murmurinhos dentro de casa e movimentos estranhos. Ela sabia da situação do país e de seus irmãos judeus, porém não imaginava que também teria que se esconder e que tentaria sobreviver em um esconderijo por mais de 2 anos.
Foi assim que aconteceu. Pouco tempo após seu aniversário de 14 anos, em que ganhou o diário, sua família teve que abandonar a casa e a vida para se esconder no "anexo secreto" em uma empresa/fábrica que seu pai trabalhava.
A polícia, baseada nas ideias do nazismo, estava invadindo as casas e levando os judeus para campos de concentração em outras cidades e, no meio do caminho, matava e dizimava muitos daquele povo. Anne sabia. Ela e sua família viveram por mais de dois anos com o constante medo de serem descobertos. Haviam bombas jogadas pelos aviões, tiros, gritos e todo tipo de barulho que fazia Anne temer os segundos seguintes.
Uns amigos do pai de Anne ajudavam a família, os mantinham escondidos na fábrica e trabalhavam normalmente para não oferecer suspeita aos policiais e aos funcionários. Por isso, a família tinha que fazer todo silêncio possível. Ninguém, além dos que os ajudavam, podia descobri-los ali.
Junto com os Frank, a família dos Van Daan (pseudônimo), composta por mãe, pai e filho também se escondiam no anexo, e logo depois um senhor chamado Sr. Dussel (pseudônimo) se juntou ao grupo.
Os oito (e dois gatos) tiveram o mesmo sentimento durante todo o período que lá ficaram, e como se não bastasse a ameaça de assassinato a que estavam expostos, os dias costumavam ser estressantes, desgastantes e entediantes como seria para qualquer grupo de pessoas que ficasse confinado por muito tempo sem poder ter muitas privacidades, sair e receber uma massa de ar fresco e puro da natureza no rosto.
Anne era extremamente sincera em seu diário, ao lê-lo me sentia bisbilhotando a vida de uma adolescente que eu já fui um dia. Ler o diário é ler Anne. Apesar da guerra e do genocídio, a garota tinha espaço em sua mente para as preocupações de uma jovem normal.
Anne ficou viva em mim. Ela era muito intensa, inteligente, estudiosa, argumentativa. Se tem uma característica que seduz alguém é a capacidade de argumentar, e Anne tinha de sobra. É um misto de sentimentos folhear as páginas do que ela escrevia. Às vezes a considerava bastante malcriada, respondona e dona da verdade. Ao mesmo tempo a admirava por isso. Eu nunca tive a coragem dela. Ela dizia o que pensava, mesmo que ainda não soubesse que seu pensamento, às vezes, estava errado e/ou equivocado. Ela não era uma má menina, era a frente de seu tempo. Todos esperavam que ela se comportasse como dama, fosse quieta, discreta, singela, meiga, silenciosa e sem muitas opiniões. Anne não era assim. A garota tinha muitos pensamentos e não podia guardá-los apenas para si mesma.
Os adultos a achavam intrometida e desagradável. E Anne sabia como a viam. O que mais doía nela era sentir que sua mãe também não a compreendia. Porém, ela também não entendia a mãe, e talvez fosse muito nova para tal compreensão. Ela até tentava ser o que desejavam que ela fosse, mas aí diziam que a jovem estava dissimulando, fingindo e a atacavam da mesma forma, sendo assim, ela preferiu sofrer sendo ela mesma do que tentando controlar sua personalidade.
Ao ler, muitas vezes senti um pouco de raiva de Anne por ela olhar muito para a versão dela e não a dos outros, só que em seguida via que nem ela sabia direito se somente sua versão era a certa, ela também se culpava, sofria e tentava fazer as coisas melhorarem, no entanto, é muito raro uma situação estar boa quando se teme a morte injusta a cada segundo.
Anne amava o pai, pois este a compreendia e a aproximava mais do que os outros. Ela sentia uma espécie de ódio por sua mãe porque não a via exercendo um papel que ela considerava ser o de mães. Gostava de sua irmã mas não eram melhores amigas. Se incomodava com Sr. Dussel, mas aceitava a situação. E achava a Sr. Van Daan a mais insuportável da família dos Vaan Daan. Era briga dia sim e dia não no anexo. Ou talvez dia sim e dia sim. As visitas de Bep e outros amigos do grupo que os ajudaram a se esconder eram na maioria das vezes alegres e levavam notícias da conjuntura de fora.
A rotina dos 8 era de acordar, tomar café, racionar comida (Os amigos e ajudantes compravam no mercado clandestino e davam a eles para estocar, além das compotas que a fábrica abaixo produzia), tomar banho às vezes, dividir funções como cozinhar, descascar batatas (Foi o que mais comeram, creio que todos os dias), arrumar as camas, varrer o espaço, etc. Depois almoçavam, à tarde faziam algo como ler e estudar. A educação de Anne, sua irmã e de Peter se manteve durante todo o período. O pai ensinava alguns assuntos, elas liam bastantes livros didáticos, faziam exercícios, aprendiam idiomas, praticavam datilografia por correspondência e Anne escrevia histórias, livros, diários... Era um grupo bem estudioso, assim por dizer. À noite, depois de comerem, se reuniam para escutar a BBC no rádio com as notícias da guerra.
Eles acreditavam que a Inglaterra iria fazer com que a guerra acabasse. Faziam previsões, tinham esperança que sairiam dali vivos. O que ocorria era que as invasões e assaltos à empresa os assustavam bastante. As madrugadas de tiros e bombas ao redor deixavam todos acordados e com muito, muito medo. Contudo, havia esperança.
Além das brigas e picuinhas familiares que tinham todos os dias, Anne construiu uma amizade com Peter, o filho dos Van Daan. Foi tudo muito cauteloso e demorado, eles levaram bastante tempo para se aproximarem e confiarem um no outro. Gostaria muito de saber a versão de Peter à respeito do que ele viveu com a jovem. Para Anne, foi o nascimento de um amor, aos poucos ela se apaixonou por ele e sentiu-se correspondida. Houveram abraços, carinhos e beijos. Sr. Frank proibiu qualquer tipo de relacionamento para além da amizade, o que levou Anne a se afastar um pouco de seu pai. Ela se sentia adulta, não tinha necessidade da mãe e agora não se importava com a opinião do pai, e escreveu isso para ele. Com o tempo, se arrependeu das duras palavras entregues a seu pai.
Houveram dois pontos que mais admirei no livro:
1: A sinceridade. Era como ler um diário meu. Me perdoei por estar xeretando os segredos de uma adolescente da metade do século XX, pois ela, em certo mês, ouviu no rádio que documentos escritos durante a guerra poderiam ser publicados, e ela queria a publicação de seu diário, logo, estava disposta a abrir seus pensamentos, certezas, incertezas e relatos para o mundo.
Ela escreveu sobre sua sexualidade, descobertas, experiências e desejos. E foi bom saber que, mesmo ela tendo sua vida interrompida, viveu (ou ao menos refletiu) situações inerentes à adolescência. Ou seja, apesar da guerra, ela vivenciou, mesmo que de forma limitada, os prazeres e as dores da idade a que se encontrava. E foi lindo ver o crescimento dela. Em dois anos a Anne se transformou, ela seria uma mulher brilhante se não tivessem ceifado sua vida.
2: A cultura. Era encantadora a forma cultural específica que aquele grupo vivia. Mesmo com todas as privações, todo mundo lia, estudava e conhecia sobre inúmeros assuntos. Anne estava ensinando francês para o pai. Isso é estupendo. O currículo das meninas e do menino era melhor do que o de muitos graduados de hoje em dia. Imagino que não somente eles, mas várias famílias da época vivessem com este princípio, o de estudar e saber cada dia mais, isso é brilhante. Eles também apreciavam bastante a escrita. Nos aniversários davam jeitos de escrever poemas e entregar junto com alguma comida que guardaram somente para dar de presente ao aniversariante. Mesmo no caos, eles tinham esperança de que a guerra acabaria e que eles precisariam estar aptos para voltar ao mundo, às escolas e a uma nova sociedade.
A experiência de ler esse livro é única. Quando se está chegando ao fim da leitura, o pensamento que paira na mente all the time é: "Eu não acredito que essa menina e essa grande família cheia de vida vão morrer, e pior, eles têm a esperança de que vão ficar vivos."
Quando se lê um livro e os personagens já estão esperando determinado fim, aceitamos mais fácil, todavia, Anne não esperava a morte. Ela acreditava que sobreviveria... e quase sobreviveu. Esse quase é cruel.
Um tempinho antes da guerra finalmente acabar, o anexo secreto foi descoberto e invadido. Prenderam alguns amigos que ajudavam o pessoal e levaram o oito do grupo para locais diferentes. As famílias foram separadas. Alguns foram assassinados na câmara de gás, outros morreram de não aguentar aquela prisão genocida a qual estavam inseridos e, no caso de Anne, faleceu de tifo junto com sua irmã em um campo de concentração.
O único sobrevivente foi o Sr. Frank, o pai de Anne, que anos depois organizou e publicou o diário de sua filha.
Se eles não fossem descobertos, talvez a própria Anne pudesse estar aqui hoje para dizer a frase que escreveu e que tocou meu coração: "Não se sinta melhor ao pensar que há pessoas em situações piores, se sinta melhor por saber que tem a natureza, o ar e o céu para você admirar".
Anne é todos os judeus, é todo povo oprimido. O que aconteceu com eles foi o resultado de uma parte que não deveria se sobressair nos seres humanos. Dessa forma, que hoje olhemos para o passado (e também para o que estão vivendo agora nossos irmãos, sejam os imigrantes, sejam os da faixa de gaza, sejam os pobres e pretos abandonados pelo nosso país) e não repitamos a mesma atitude devastadora que uma mente, apoiada por várias outras, foi capaz de ter.
Minha experiência: Ler o Diário de Anne Frank foi a realização de um sonho de criança. Foi uma versão com 300 e não sei quantas páginas, que li em uma semana, sendo que fiquei na mão por 10 dias, mas efetivamente o li durante o carnaval desse ano e no dia que tinha que devolver li 100 páginas em 3 horas seguidas, pois tinha que entregar à biblioteca municipal da cidade. Eu amo Anne Frank.
Editora: Record
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